quinta-feira, fevereiro 01, 2007

123%

Sentei-me. Liguei o computador. Fiquei a olhar o fundo do ambiente de trabalho. Alguém me disse ‘Trabalha!’ e abri qualquer ficheiro. Fiquei horas a olhar para uma página em branco e vi a minha vida. Vi um caderno de folhas imaculadas à espera que alguém pegasse nele e o escrevesse, de uma ponta à outra, com canetas de vários tons de azul e traços de largura dispares.

O caderno não pode ser escrito por uma só pessoa. A vida é um livro cujos diferentes capítulos são escritos por pessoas diferentes, que acrescentam algo novo, que reforçam ideias, que completam raciocínios, que tentam apagar os parágrafos mal escritos, corrigir os erros de alguma forma… E nós o que fazemos? Nós escrevemos nos cadernos de outras pessoas, porque só assim faz sentido continuar aqui. Se não tivéssemos outros cadernos para escrever ninguém escreveria no nosso e era como se não tivéssemos existência, uma vez que ninguém tinha conhecimento dela.

No fundo somos todos escritores. Viemos ao mundo para realizar feitos literários, para escrever poemas nos intervalos da chuva, para descrever sorrisos iluminados pelo luar, para acrescentar virgulas e pontos finais em obras tidas como acabadas. Nem todos recebemos prémios no final, mas se a vida fosse justa não seria vida seria ilusão.

Os que recebem prémios são os que nos fazem reagir mais ao que escrevem. Os que nos arrancam lágrimas quando descrevem uma paisagem ou vómitos quando falar na existência. Os outros passam, escrevem, seguem o seu caminho, são felizes ou tristes, têm o nosso respeito mas ninguém quer saber deles…

Memórias de uma noite de natal

Ontem não nevou. Tal como todos esperávamos. Nunca neva no Porto; acho que já me habituei a essa ideia. Só neva nos filmes, naquelas histórias de amor que nunca acontecem a ninguém em que ele e ela ficam juntos depois de lutarem com o mundo e ganharem. Ontem foi uma noite como todas as outras. Esteve frio. Não choveu. (não tem chovido muito este Inverno) Estive em casa. Vi um filme e meio. (Há sempre filmes que nunca vejo desde o inicio, mas que percebo lindamente e que me deixam a pensar no porquê de se fazer uma longa metragem, se todas as histórias se resumem a 15 minutos).

O dia de ontem teve uma tarde. Uma tarde fria em que fiz o que fazia quando era criança. Fui à Areosa com a minha mãe, comprar as últimas prendas. Fomos ao Covas comprar Bolo-rei. O meu pai foi à Fátima. (Eu já desisti de lá ir) Depois fomos todos ao Carvalho. Eu adoro o Carvalho. Estava lá o filho dele e depois chegaram as netas. Uma delas tem o meu nome. Quando a Filipa nasceu, a minha mãe ainda tinha o Citroen e fomos com a Liliana vê-la. Na volta, a minha mãe teve um acidente. O motor do carro começou a deitar fumo. A mim doía-me o pescoço e o polegar direito. Foi o Adriano que arranjou o carro. Nunca mais foi o mesmo. E já lá vão 10 anos.

Quando saímos de casa da Rosa, olhei para o que em tempos foi a minha casa. Para o lugar onde deviam estar as paredes que, durante 15 anos, me viram rir com os outros putos, cair da bicicleta, ouvir o senhor de pijama castanho que nunca soube o nome, ouvir a minha mãe a mandar-me comprar óleo, ir para o vão das escadas com o meu primeiro namorado, imaginar a minha mãe à espera do óleo em casa… Não estavam lá. No seu lugar a escuridão da noite e umas quantas estrelas brilhantes.

Virei costas. Estava mesmo muito frio. Disse aos meus pais ‘Vou a correr’. Comecei a andar mais rápido e a tentar não calcar os riscos dos desenhos do chão. Depois comecei a não calcar os quadrados que tinham os blocos de pedra que ladeavam as portas. Até que a minha vontade foi saltar para um bloco de pedra e ir avançando, saltando de um para o outro. Todas as vezes que descia o bairro era isso que fazia, dos 3 aos 15 anos. Desde que nasci até sair de lá. Do lado esquerdo estava a minha escola. Os muros que do lado de dentro dizem ‘Andreia’ em letras cor-de-rosa e asas de anjo azuis. O vaso onde a professora Cármen enfiou a cabeça, depois de eu lhe ter feito uma rasteira e ela cair…

Ontem também existiu uma noite. Uma noite sem batatas, bacalhau, polvo. Com costeletas e fiambre panados. Com um piercing, um DVD de HIM, um casaco, uma jarra, chocolates, 110 euros que já têm destino. Depois uma cama. A história da boneca de papelão que a minha mãe tinha. As palavras ‘um dia, chateei-me com o Fernando e meti a boneca no tanque da roupa’. Uma boneca a desfazer-se. A minha mãe, uma criança ainda, a chorar. No quarto ao lado, a minha mãe ria-se. Eu estava quase a chorar.

Fechei os olhos. Tentei inventar uma história Disney para mim, para acreditar e sonhar até à manhã seguinte. Nada. Só a vontade de chorar pela boneca, o pensamento que a minha está a entrar em depressão, a minha família a ruir e eu afastada. Eu sem fazer nada por eles. Eu a responder torto a todos. Eu a ser egoísta e a sacrificar todos os que gostam de mim de verdade.

Sem príncipe para me imaginar ao seu lado. Sozinha. Na escuridão mais negra que a do quarto. Na escuridão de uma alma vazia.