quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Memórias de uma noite de natal

Ontem não nevou. Tal como todos esperávamos. Nunca neva no Porto; acho que já me habituei a essa ideia. Só neva nos filmes, naquelas histórias de amor que nunca acontecem a ninguém em que ele e ela ficam juntos depois de lutarem com o mundo e ganharem. Ontem foi uma noite como todas as outras. Esteve frio. Não choveu. (não tem chovido muito este Inverno) Estive em casa. Vi um filme e meio. (Há sempre filmes que nunca vejo desde o inicio, mas que percebo lindamente e que me deixam a pensar no porquê de se fazer uma longa metragem, se todas as histórias se resumem a 15 minutos).

O dia de ontem teve uma tarde. Uma tarde fria em que fiz o que fazia quando era criança. Fui à Areosa com a minha mãe, comprar as últimas prendas. Fomos ao Covas comprar Bolo-rei. O meu pai foi à Fátima. (Eu já desisti de lá ir) Depois fomos todos ao Carvalho. Eu adoro o Carvalho. Estava lá o filho dele e depois chegaram as netas. Uma delas tem o meu nome. Quando a Filipa nasceu, a minha mãe ainda tinha o Citroen e fomos com a Liliana vê-la. Na volta, a minha mãe teve um acidente. O motor do carro começou a deitar fumo. A mim doía-me o pescoço e o polegar direito. Foi o Adriano que arranjou o carro. Nunca mais foi o mesmo. E já lá vão 10 anos.

Quando saímos de casa da Rosa, olhei para o que em tempos foi a minha casa. Para o lugar onde deviam estar as paredes que, durante 15 anos, me viram rir com os outros putos, cair da bicicleta, ouvir o senhor de pijama castanho que nunca soube o nome, ouvir a minha mãe a mandar-me comprar óleo, ir para o vão das escadas com o meu primeiro namorado, imaginar a minha mãe à espera do óleo em casa… Não estavam lá. No seu lugar a escuridão da noite e umas quantas estrelas brilhantes.

Virei costas. Estava mesmo muito frio. Disse aos meus pais ‘Vou a correr’. Comecei a andar mais rápido e a tentar não calcar os riscos dos desenhos do chão. Depois comecei a não calcar os quadrados que tinham os blocos de pedra que ladeavam as portas. Até que a minha vontade foi saltar para um bloco de pedra e ir avançando, saltando de um para o outro. Todas as vezes que descia o bairro era isso que fazia, dos 3 aos 15 anos. Desde que nasci até sair de lá. Do lado esquerdo estava a minha escola. Os muros que do lado de dentro dizem ‘Andreia’ em letras cor-de-rosa e asas de anjo azuis. O vaso onde a professora Cármen enfiou a cabeça, depois de eu lhe ter feito uma rasteira e ela cair…

Ontem também existiu uma noite. Uma noite sem batatas, bacalhau, polvo. Com costeletas e fiambre panados. Com um piercing, um DVD de HIM, um casaco, uma jarra, chocolates, 110 euros que já têm destino. Depois uma cama. A história da boneca de papelão que a minha mãe tinha. As palavras ‘um dia, chateei-me com o Fernando e meti a boneca no tanque da roupa’. Uma boneca a desfazer-se. A minha mãe, uma criança ainda, a chorar. No quarto ao lado, a minha mãe ria-se. Eu estava quase a chorar.

Fechei os olhos. Tentei inventar uma história Disney para mim, para acreditar e sonhar até à manhã seguinte. Nada. Só a vontade de chorar pela boneca, o pensamento que a minha está a entrar em depressão, a minha família a ruir e eu afastada. Eu sem fazer nada por eles. Eu a responder torto a todos. Eu a ser egoísta e a sacrificar todos os que gostam de mim de verdade.

Sem príncipe para me imaginar ao seu lado. Sozinha. Na escuridão mais negra que a do quarto. Na escuridão de uma alma vazia.

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