segunda-feira, janeiro 10, 2005

Espelho

(Nunca um outro post tinha justificado tão bem o nome deste Blog como aquele que agora escrevo. Se não se tratasse de uma reportagem para ser avaliada e fosse mais uma divagação, o seu título seria mesmo Espelho…)

Raio X

Durante muitos anos, o Bairro S. João de Deus foi considerado o bairro mais problemático da cidade do Porto, conhecido por muitos como Tarrafal. Os presidentes da Câmara mudavam, as leis sociais adaptavam-se, mas a vida das pessoas que moravam no bairro mantinha-se igual.

Habituada a viver à margem da sociedade, a maioria dos “tarrafalences” desenvolveu uma espécie de defesa no relacionamento com terceiros e o limite entre o certo e o errado foi-se perdendo aos poucos. Porém, a culpa não será somente daqueles que consumiam droga, dos que a vendiam, dos que assaltaram, dos que se comportaram como vândalos onde quer que passem.

Leis Próprias

Para Maria Celeste, ex-moradora do Bairro S. João de Deus, a culpa também era de quem detinha o poder, “porque nos deixaram ao deus dará”. De facto, quer por desinteresse quer por incapacidade de o fazer, durante anos, ninguém conseguiu reintegrar os seus habitantes de forma amigável no seio da sociedade portuense.

Até que, quando Rui Rio chega ao poder, são tomadas medidas e as pessoas começam a ser mudadas para outros bairros e aglomerados habitacionais. Por um lado, tentava-se diminuir o número de fogos (que eram inúmeros). Por outro lado, era uma nova forma de obrigar aqueles que sempre tinham vivido no Bairro S. João de Deus a conviver com novas pessoas, apercebendo-se de que a vida social é também importante.

As pessoas começaram, então, ir habitar noutras zonas da cidade como o Bairro do Viso, Pasteleira, Falcão e até no Bairro do Cerco do Porto, outrora também um bairro que sabia causar umas quantas dores de cabeça em quem estava no poder. No início, alguns causaram ainda problemas. Ainda está bem fresca na memória de quem mora no Cerco o dia do desacato entre “cerqueiros” e “tarrafalences”. Agora os ânimos acalmaram…

Obras

Começaram as obras que visam melhorar o espaço. Os projectos são um tanto ou quanto ambiciosos para se aplicarem ao que é considerado o pior bairro da cidade. Pretende-se demolir uns quando blocos, desbastar uma certa dimensão de terreno árido, construir novas entradas para o bairro, uma universidade e uma biblioteca. No fundo o que se está à procura é de, como se faz com os legos, destruir a maior parte do que já foi criado (e que causa todos os problemas) e encontrar uma forma de criar algo não só nova mas grande o suficiente para apagar, em poucos anos, o estigma criado em torno do Bairro S. João de Deus.

Fátima, também ex-moradora do bairro, já está a viver noutro lado há cerca de cinco anos, mas diz que é impossível desligar-se totalmente do seu antigo bairro porque deixou lá os amigos, os conhecidos e a história da sua vida. Afirma que não se arrepende de ter mudado de casa, "Aqui temos o socego que procuravamos quando decidimos sair do bairro".

Antes de entrar neste estado de remodelação, os motivos que levavam alguém a querer sair podiam ser diversos, mas quase sempre se relacionavam com o facto de não serem bem aceites pelos outros só porque moravam no Bairro S. João de Deus. Angelina chegou à conclusão que tinha de sair porque queria que a sua filha, quando se candidatasse a um emprego, não passasse pelo que via os vizinhos passar. "Durante muito tempo, pensei que o local onde moravamos não iria influenciar as nossas vidas, mas afinal...", diz. Angelina queria que a vida fosse um bocado mais fácil…

Continuam as obras, mas as datas atrasaram-se. Nos primeiros relatórios da Câmara Municipal do Porto apontavam o ano de 2004 como o ano em que as novas estradas estariam concluídas. Estamos em 2005 e isso ainda não aconteceu. Ainda há blocos que não foram demolidos e pessoa a quem ainda não foi entregue a chave de uma outra casa… Os imprevistos existem.

Principalmente num bairro em que quase metade do seus habitantes estava com e renda e outras contas em atraso e não têm direito a outra casa. Muitas famílias já foram retiradas do bairro, mas muitas mais ainda lá estão. Muitos casos estão a ser tratados com menos tacto do que seria necessário e muitas pessoas vão acabar por ter de encontrar um solução por elas próprias. Todas estas divergências com as entidades responsáveis levaram a verdadeiros boicotes no trabalho das máquinas e “manifestações” que impediram a demolição, na data predefinida, de alguns edifícios.

Futuro

Os habitantes do Bairro S. João de Deus dividem-se em dois grupos. De um lado estão aqueles que já saíram do bairro e que, morando no seu novo lar, por mais que tentem não conseguem virar costas e seguir uma vida nova esquecendo a anterior. Do outro lado estão as pessoas que ainda moram no bairro e que esperam pelo dia em que vão deixar as suas raízes, pelo dia em que também a sua casa vai ser reduzida a escombros.

Aconteça o que acontecer num futuro próximo ou longínquo, a cidade do Porto não vai esquecer totalmente o quão problemático foi o Bairro S. João de Deus, assim como não esqueceu o caso do Bairro do Cerco, entre outros. As pessoas, essas vão viver sempre com a sombra do já falado estigma social e com as memórias daquilo porque passaram, memórias essas que nenhuma obra, por maior que seja, conseguirá apagar.

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